segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Carta de Caio F.

De um pedaço até o final, porque ela é muito grande.
Nem preciso dizer o quanto me identifiquei com ela, desde a parte da duração, a época em que começou a 'cair', até a música 'atrás da porta', que tantas vezes ouvi.

"[...] De repente uma luzinha vermelha começou, cigarro no escuro, a piscar dentro de mim. Foi no carnaval que passou. Suspeitas: porra, eu me afastei de tudo, de todos, joguei tudo pro alto e só quero esse amor, nada mais me interessa, se esse amor me faltar (pode?) eu só tenho isso, é o único laço que me prende à vida - e se falta, Deus, se faltar, o que faço? E...se dançar? Ai dançou. Foi dançando. Não sei bem como. Uma tarde peguei nas suas mãos e, bem cruel (punhais: como a gente sabe apunhalar com engenho e arte, crava devagarinho a lâmina, depois revira, dentro da ferida), pedi assim: me olha bem dentro dos meus olhos e me responde á seguinte pergunta: "Você não me ama mais?" Silêncio tão espesso que consegui ouvir o ruído do movimento de rotação da Terra. Feito novela das seis, eu abri a boca quando ouvi a resposta. Um lento Não. Um claro Não. Um seguro Não. Um límpido Não. Um tranquilo Não. Um sem dúvida alguma não.Um sem-volta Não. Um para-sempre Não. Um negativo Não. Um afirmativo Não. Repete, pedi. Repetiu. [...] Tinham sido NOVE MESES de fidelidade absoluta,nada imposto, o que é pior: supernatural...Fidelidade, no amor-amor, é sempre supernatural. Quando decidi estou-ótimo-fullgas-total-posso-voltar, voltei. The reencontro: quando dei por mim estava dizendo as coisas mais duras e agressivas e cruéis e impiedosas e injustas e ferinas e baixas e grossas que uma pessoa pode dizer à outra. Comecei a me perder pela cidade. Selecionei vinte gatos & gatas mais lindos do pedaço, dez semifinalistas, cinco finalistas, transei todos. Saí sem parar. De bar em bar, telefone tocando sem parar. Explodindo de vitalidade e saúde e sedução: capacidade de superação. Puxa, gente, como sou maravilhoso, como sou maduro e equilibrado, como sei dar a volta por cima, como não sou careta, como sou moderno e liberadésimo. Aí, desabou. De manhã bem cedo, chegando da vida, percebi uma pequena rachadura na parede externa do edifício. Avançava lentissimamente. Ao meio-dia rachou de alto a baixo. O edifício veio ao chão: me interna, pedi pra mãe, estou infeliz pra caralho. Peguei o pacote de carta que tinha pedido de volta (fiz absolutamente todos os números, o problema é que a plateia estava vazia: ninguém aplaudiu minha melhor sequência de sapateado), coloquei aos pés de Ogum. E agora, Caio F.? Agora, estou amanhecendo.Ah, me digo, então era assim. Essa coisa, o amor. Já conheço? Já conheço. Mas como é mesmo que se chama? Também não estou certo se estarei mesmo amanhecendo. Talvez, sim, anoitecendo, essas luzes penumbrosas são muito parecidas. Não sei muita coisa. Quase nada. Pedi? Levei. Nunca tinha sido tão intenso, nem tão bonito. Nunca tinha tido um jeito assim, tão forever. Não me diga que vai passar, vai passar, vai passar, vai passar. Não me diga que foi ótimo, o que você queria, a eternidade? Não me peça para não te encher o saco lamuriando. Posso não saber nada do coração das gentes, mas tenho a impressão de que, de tudo, o pior é quando entra a segunda parte da letra de "Atrás da porta", ali no quando "dei pra maldizer o nosso lar pra sujar teu nome, te humilhar". Chico Buarque é ótimo pra essas coisas. Billie Holiday é ótima pra essas coisas. E Drummond quando ensina que “o amor, caro colega, esse não consola nunca de núncaras”. Aí você saca que toda musica, toda letra, todo poema, todo filme, toda peça, todo papo, todo romance, tudo e todos o tempo todo, antes, agora e depois, falam disso. Que o que você sente é único e indivisível e é exatamente igual à dor coletiva, da Rocinha a Biarritz. [...] Meus amigos, abandonados para que eu pudesse mergulhar, voltaram a mil. Tem seus prazeres o fim do amor. Se é patologia, invenção cristã-judaico-ocidental-capitalista, ou maya, ou ego, se é babaquice, piração, se mudou-através-dos-tempos, puro sexo, carência, medo da morte: não interessa. Tenho certeza que estive lá, naquele terreno. Ele existe. [...] O bicho homem não faz outra coisa a não ser pensar no amor. Até as relações de produção, a luta de classes, a ecologia, o jogo pelo poder: tudo, questão de amor. Formas de amor. Amor é a palavra que inventamos para dar nome ao Sol abstrato em torno do qual giram nossos pequeninos egos ofuscados, entontecidos, ritmados. A vida toda. [...] Não estou com pena de mim. Tá tudo bem. Tenho tomado banho, cortado as unhas, escovado os dentes, bebido leite. Dá licença, Bob Dylan: It's all right man, I'm just bleeding. Tá limpo. Sem ironia. Sem engano. Amanhã, depois, acontece de novo, não fecho nada, não fechamos nada, continuamos vivos e atrás da felicidade, a próxima vez vai ser ainda quem sabe mais celestial que desta, mais infernal também, pode ser, deixa pintar. Se tiver aprendido lições (amor é pedagógico?), aproveito e não faço tanto besteira. Mas acho que amor não é cursinho pré-vestibular. Ninguém encontra seu nome no listão de aprovados. A gente só fica assim. Parado olhando a medida do Bonfim no pulso esquerdo, lado do coração e pensando, pois é, vejam só, não me valeu."

Aliás, a letra de Atrás da porta, de Francis Hime e Chico Buarque (não podia faltar nesse blog)
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
-
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua...

Um comentário:

  1. "De bar em bar, telefone tocando sem parar. Explodindo de vitalidade e saúde e sedução: capacidade de superação. Puxa, gente, como sou maravilhoso, como sou maduro e equilibrado, como sei dar a volta por cima, como não sou careta, como sou moderno e liberadésimo."

    quando li essa carta, nesse trecho foi que senti uma lança no peito. é sempre assim. acabamos uma história e queremos supera-la de qualquer jeito o mais rápido possível e aí é que tá o erro. a superação não pode ser rápida, superar leva tempo e é natural, quer dizer, tem que ser. e quantas vezes já não fizemos dessa de mascarar a dor indo de bar em bar fingindo alegria? sem lembrar que o alcool depois de um tempo cumpre com maestria seu papel de depressor e tudo só piora na manhã seguinte. na ressaca moral.

    atrás da porta é uma das músicas mais belas que conheço...tão real (por isso bela?). "Te adorando pelo avesso" me mata. chico buarque é realmente bom pra essas coisas.
    (deu até uma tristeza lendo esse post)

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